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Apesar da incerteza que naturalmente circunda as questões relativas ao avanço da inteligência artificial e da tecnologia aplicada ao direito, fato é que já existem inúmeras ferramentas que prestam importante auxílio aos profissionais do meio jurídico, sejam eles advogados, juízes, promotores, assistentes ou demais prestadores de serviço na área.
São cada vez mais frequentes as discussões envolvendo a utilização de tecnologia no direito, notadamente quanto à utilização de inteligência artificial e à proliferação de ferramentas tecnológicas (softwares) destinadas a auxiliar e/ou resolver questões jurídicas. No Brasil e no mundo, é notório o surgimento de startups jurídicas, as “lawtechs” ou“legaltechs”, que atuam nas mais diversas áreas do direito, seja para implementar plataformas de acordos ou melhorar a cultura de mediação e facilitar a resolução de conflitos, seja na gestão de escritórios jurídicos ou do Judiciário, por meio da jurimetria (que resumidamente significa a aplicação de métodos quantitativos e estatística ao direito), até a utilização de inteligência artificial (IA), com o objetivo de aprimorar a assertividade nos casos ou imprimir mais eficiência nos julgamentos. Isso tudo pode auxiliar o profissional jurídico e possivelmente contribuir para desafogar o congestionamento de processos no Judiciário, especialmente o brasileiro.
Mas quais os efeitos desse crescente avanço tecnológico sobre o direito? O advogado se tornará desnecessário, visto que inúmeros softwares já preveem as melhores teses para aplicar a determinados casos, ou porque a própria elaboração e revisão de contratos também poderá ser otimizada por essas ferramentas? E nesse cenário próximo, também passaremos a ser julgados por robôs (softwares ou aplicativos) como nos casos do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em que a ferramenta Radar identificou e separou recursos com pedidos idênticos e possibilitou o julgamento de 280 processos pela 8ª. Câmara Cível do TJMG de forma massificada1; ou dos EUA, onde a cidade de New Orleans está utilizando inteligência artificial para tentar prevenir crimes.2
Mas enquanto alguns temem, o mercado avança, e, a despeito de preocupações de cunho ético-moral ou de receio quanto à desnecessidade do profissional jurídico para a realização de determinadas tarefas, penso que o cenário é de otimismo. A jurimetria, por exemplo, só tem a contribuir com a justiça, ao oferecer dados e estatísticas até então desconhecidos, que poderão nortear tanto a estratégia jurídica a ser adotada pelos profissionais do direito, como a gestão de processos, seja na prestação de serviços jurídicos ou na entrega da prestação jurisdicional, pelo Judiciário. Outro ramo é a informação, em que diversas empresas buscam aproximar o direito do cidadão comum, facilitando não só a pesquisa de conteúdo jurídico, mas auxiliando clientes e prestadores de serviço e democratizando o acesso à informação. Já no âmbito do Judiciário, inúmeras ferramentas já auxiliam na otimização dos julgamentos, a exemplo do software Victor, utilizado pelo Supremo Tribunal Federal3. O desafio agora é a utilização da inteligência artificial nas decisões, em que algoritmos poderão “ler” a questão jurídica em debate, e, aplicar uma solução ao caso, conforme a lei e a jurisprudência.
Apesar de críticas pontuais, como as de Lenio Streck em recentes artigos publicados em sua coluna semanal no Conjur4, o fato é que a jurimetria tem o potencial de prestar um enorme serviço ao direito, por analisar e compilar dados e tendências de julgados e poder contribuir para a sedimentação da jurisprudência. Aliás, ao contrário de solucionar dilemas éticos ou construir teorias de justiça ou as próprias leis, as lawtechs buscam auxiliar na resolução de problemas cotidianos, do qual o Brasil é caso único no mundo, com mais de 80 milhões de processos tramitando na Justiça. Assim, a crescente utilização da inteligência artificial no direito busca “apenas viabilizar mais acordos, ajustar provisões, adequar estratégias aos precedentes, prevenir litígios, elaborar contratos mais seguros e redigir textos jurídicos mais inteligíveis”5. A análise econômica do direito também corrobora este raciocínio, ao sugerir que os julgamentos ocorram com base em evidência e dados estatísticos, de modo a aproximar o direito da vida real das pessoas.
Afinal, quando um advogado insere em uma petição que seu direito está fundado em jurisprudência pacífica, isso decorre mais do esforço argumentativo empreendido pelo profissional – por mais que ele confie em sua tese – ou de uma análise estatística e segura sobre a tese prevalecente no referido assunto? É neste aspecto que a jurimetria pode contribuir com a segurança jurídica, servindo como ferramenta poderosa para os profissionais do direito.
Em um país com pouca cultura de obediência a precedentes judiciais, apesar dos esforços do Código de Processo Civil de 2015, e, do relativo pouco tempo de sua implementação para que possamos concluir pelo sucesso ou não das alterações promovidas na lei processual, o fato é que, além da cultura de desprezo a precedentes – e da incipiente cultura de organização e sistematização dos mesmos –, a liberdade conferida aos juízes para decidirem conforme bem entenderem (a livre motivação), acaba por colaborar com a insegurança do sistema jurídico, não propiciando a previsibilidade e estabilidade desejada ao funcionamento da Justiça. Diante disso, pode ser preferível um sistema que esteja programado para adotar sistematicamente os precedentes dos tribunais superiores do que o modelo de “uma cabeça, uma sentença” vigente no país.
É evidente que sempre haverá exceções à regra, como os institutos da distinção (distinguishing) e superação (overruling) do entendimento, previstos em nosso sistema processual, que devem ser respeitados e devidamente observados, quando for o caso. No entanto, uma das funções primordiais da justiça é garantir segurança e previsibilidade aos cidadãos. E um sistema jurídico estável e previsível figura como um dos principais fatores para que as instituições determinem seu caminho para o desenvolvimento6.
Nesse sentido, é de se questionar, se a utilização da jurimetria seria mesmo um risco à sociedade, ou, lado outro, trataria de genuína contribuição à segurança jurídica. Afinal, quando um cidadão procurar um advogado, ele gostaria de ter um exato prognóstico sobre suas perspectivas de êxito, considerada a lei e a interpretação judicial aplicável e que deverá prevalecer em seu caso (em razão de uma leitura sistemática e organizada dos casos semelhantes, e, consideradas as evidências e eventuais particularidades do caso concreto, por óbvio), ou preferirá ouvir de seu procurador que, apesar da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ser pacífica no seu caso, por exemplo, não é certo ou mesmo provável que seu direito seja assegurado nas instâncias inferiores, uma vez que o juiz pode simplesmente discordar do posicionamento superior e não aplicar os precedentes e a jurisprudência dominante em seu caso? Neste exemplo hipotético, apesar de pretensão jurídica com sólido embasamento, caso tenha julgamento desfavorável em primeira instância, a parte ainda deverá enfrentar um calvário processual a fim de alcançar a instância revisora ou especial de modo a fazer valer seus direitos. Nenhuma novidade, neste aspecto. No entanto, impende destacar o significativo impacto que a aplicação de inteligência artificial em uma situação como esta poderia proporcionar ao jurisdicionado, bem como à administração e organização da Justiça.
Aqui cabe salientar duas questões: a primeira é que a liberdade de motivação do Magistrado continuará existindo, mas caberá a ele analisar e decidir, considerando os fatos e provas apresentadas no caso concreto, se o caso é distinto daqueles da sedimentada jurisprudência, pois caso seja, poderá aplicar solução distinta dos precedentes, aplicando a técnica do distinguishing ao caso. E a mesma técnica ou solução poderá ser aplicada nos casos de superação do entendimento (overruling). De qualquer maneira, a ferramenta servirá sempre como auxílio ao profissional do direito, nunca como substituta. Assim, por mais que um robô (software) possa ser utilizado para agilizar julgamentos, é certo que as decisões devem ser assinadas por quem de direito, razão pela qual a importância do julgador nunca será diminuída, visto que, no final do dia, continua sendo sua a responsabilidade de validar (ou não) a solução/decisão aplicada ao caso pela ferramenta tecnológica, chancelando ou não as situações enfrentadas. De forma alguma se tornaria refém da ferramenta ou perderia importância na prestação jurisdicional.
Portanto, apesar da incerteza que naturalmente circunda as questões relativas ao avanço da inteligência artificial e da tecnologia aplicada ao direito, fato é que já existem inúmeras ferramentas que prestam importante auxílio aos profissionais do meio jurídico, sejam eles advogados, juízes, promotores, assistentes ou demais prestadores de serviço na área. E também é certo que as ferramentas não substituirão os profissionais, mas assim como toda ferramenta tecnológica causa apreensão no início, uma vez compreendida e utilizada de forma correta, poderá ter o positivo efeito de contribuir significativamente para a almejada agilidade e eficiência nos serviços jurídicos e na prestação jurisdicional.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 STF investe em inteligência artificial para dar celeridade a processos.
4 Disponível em “Lawtechs, startups, algoritmos: Direito que é bom, nem falar, certo?” e “Que venham logo os intelectuais para ensinarem aos especialistas”
5Que venham os especialistas, e rápido, porque ninguém aguenta mais essa bagunça.
6 ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James A. Why Nations Fail: The origins of power, prosperity and poverty. New York: Crown Publishers, 2013.
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*Carlos Alberto Doering Zamprogna é mestrando em Direito, Justiça e Desenvolvimento pela Escola de Direito do Brasil – EDB. Especialista em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e em Direito Processual Civil pela Universidade do Oeste de Santa Catarina.

Fonte: Migalhas

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