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O ITCMD não é atribuível ao espólio de maneira alguma

A sucessão causa mortis, ou em razão da morte, existe desde a criação dos grupos familiares e da própria comunidade, sendo vista, até mesmo, como um “prolongamento natural” [1] das relações humanas. Hoje, após a consagração do droit de saisine na alta Idade Média [2], há uma transmissão direta dos bens aos sucessores legítimos e testamentários simultaneamente à morte do autor da herança.

Porém, tal transmissão é uma ficção jurídica, pois, para constituir propriedade de outrem, além da sua aceitação, é necessária a especificação do patrimônio do falecido. Assim, tem lugar o procedimento especial do inventário e da partilha, no qual são descritos todos os bens que eram de propriedade daquele que não mais vive e, depois, é feita a divisão do acervo hereditário.

Nesse contexto, até a completa individualização e adjudicação das coisas, há a figura do espólio, que consiste num conjunto de bens, direitos e obrigações de titularidade do autor da herança. Até a partilha, portanto, o espólio é indivisível e universal, tudo por força de lei (artigo 1.791, do Código Civil).

No Brasil, o artigo 155, I, da Constituição Federal, legitimou os estados para a cobrança do Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD). Dessa maneira, o sistema tributário define como fato jurígeno a transmissão de quaisquer bens e direitos por ocasião da morte.

Mais do que isso, os fatos geradores são tantos quantos herdeiros houver. O parágrafo único do artigo 35 do Código Tributário Nacional, expressamente, dispõe isso. Aliomar Baleeiro [3] acrescentaria que isso ocorre porque se adotou o referido imposto como de caráter direto e pessoal (sobre o herdeiro), não como imposto real sobre o monte.

Então, os contribuintes do mencionado imposto, até por força do artigo 42, desse mesmo diploma legal, somente podem ser os herdeiros, vez que o autor da herança não é parte na obrigação tributada: enquanto vivo, não se cogitava do tributo; morta, a pessoa não é mais dotada de capacidade para contrair obrigações.

Salienta-se que a doutrina não tem divergido desse entendimento:

Na ausência de dispositivo constitucional a respeito, o legislador da entidade tributante tem relativa liberdade para definir o contribuinte desse imposto [ITCMD]. Em se tratando de herança, logicamente deve ser contribuinte o herdeiro, ou legatário. Em se tratando de doação, o contribuinte pode ser, em princípio, tanto o doador como o donatário.

(MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 29. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 359)

Aliás, nem mesmo pode-se reputar responsável o espólio: o Código Tributário Nacional dispõe, no artigo 131, III, que ele é responsável pelos tributos devido pelo falecido e apenas em relação àqueles vencidos até a data abertura da sucessão (ou da própria morte, como já se disse). Além de, então, não ter ocorrido o fato gerador quando vivo era, o autor da herança não é seu contribuinte, afastando, de duas formas, a responsabilidade do espólio nesse pagamento.

Parece claro, assim, que a legitimidade processual para questionar o tributo seja dos herdeiros ou legatários. Afinal, são eles o sujeito passivo do imposto e o ordenamento jurídico pátrio veda a discussão, em nome próprio, de direito alheio (artigo 18, do Código de Processo Civil).

A jurisprudência, porém, tem apontado em direção oposta. No Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por exemplo, inúmeros são os julgados reconhecendo a legitimidade ativa do espólio para questionar o tributo em análise: os magistrados têm se apoiado no fato da indivisibilidade da herança até que seja feita a partilha.

Entretanto, o ITCMD não é exigível até que se homologue seu valor (enunciado 114, Súmula do STJ). Logo, a partir do momento em que puder ser cobrado, após as últimas declarações, já se saberá o montante cabido a cada um dos sucessores ou, melhor dizendo, o quinhão com que cada um ficará da partilha.

Exatamente por essa razão é que o artigo 638, do Código de Processo Civil, deu a “as partes” o ônus de se manifestar sobre os cálculos do tributo. O espólio não é parte no processo de inventário e nem poderia sê-lo, pois não é dotado de personalidade jurídica. Quanto à sua personalidade judiciária, nesses casos não é aplicável por faltar-lhe interesse.

Além disso, o espólio não se confunde com a herança. Ora, aquele é o patrimônio antes do abatimento das dívidas e pode ser constituído, inclusive, de bens pertencentes à eventual meação do cônjuge supérstite. Por isso mesmo, consiste em um “monte-mor”, enquanto esta é, definitiva e exclusivamente, integrada pelos bens passíveis de sucessão.

A bem da verdade, o espólio pode conter coisas de titularidade do falecido que não integravam seu patrimônio porquanto afetas à relação condominial constituída a partir do casamento. Logo, o espólio nem mesmo pode ser responsável pelo pagamento do ITCMD porque pode afetar o consorte sobrevivente cujo acréscimo patrimonial é objeto tão somente do Imposto de Renda.

Felizmente, para fazer jus ao tribunal mineiro, há alguns casos em que se seguiu a linha de pensamento aqui exposta e nos quais se primou pela melhor técnica, na opinião e compreensão deste intérprete. Apenas para citar uma ementa recente, mas sem ignorar o inteiro teor de outros acórdãos interessantes, vale-se de um julgado, unânime, de uma turma da 2ª Câmara Cível:

Agravo de instrumento – Ação de inventário – ITCMD – Sujeição passiva dos herdeiros ou legatários – Ilegitimidade ativa do espólio – Preliminar acolhida. O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) somente pode ser questionado, em juízo, pelos próprios contribuintes, motivo pelo qual o espólio, na condição de mero conjunto de bens, direitos e obrigações do autor da herança, não possui legitimidade ativa.

(TJMG. Agravo de instrumento 1.0671.10.001219-2/001. Relator desembargador Marcelo Rodrigues. Julgamento em 03/10/2017)

Concluindo, de todos os ângulos analisados, verifica-se que o ITCMD não é atribuível ao espólio de maneira alguma, razão suficientemente pela qual não cabe a ele discutir o montante do imposto apurado. Assim não o fosse, haveria verdadeira confusão entre patrimônio do falecido e a própria herança, além da outorga de legitimidade extraordinária não prevista em lei.

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[1] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito das Sucessões. 6. v. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 2. 2: OLIVEIRA, Euclides de. Direito de herança: a nova ordem da sucessão.

[2] ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 16.

[3] BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 485.

Portal: Jota

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