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A universalização do direito à casa própria e a efetividade do direito à moradia.

Foi publicado no dia 14 de setembro, pelo Conselho Nacional de Justiça, o Provimento nacional que atualiza o Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra) com a regulamentação da adjudicação compulsória extrajudicial no país. A ferramenta é mais um importante instrumento de democratização do acesso à moradia, previsto no artigo 216-B da Lei Federal de Registros Públicos (6.015/1973), por ocasião da alteração da Lei do SERP, a lei 14.382 de 2022.

A Corregedoria Nacional de Justiça dedicou-se bastante ao tema ao longo deste ano, em um trabalho técnico conjunto e participativo liderado pelo Corregedor Nacional, Ministro Luis Felipe Salomão. Inicialmente, o Conselho Consultivo do Agente Regulador do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis – ONR1, que reúne grandes especialistas de diferentes vieses de atuação, realizou, por mais de 90 dias, estudos detalhados a respeito da aplicação do artigo 216-B da LRP, cujos substratos foram consolidados pela Câmera Reguladora, grupo composto por de 9 (nove) magistrados (desembargadores e juízes), responsáveis por acomodar os anseios e caminhos apontados pela lei 14.382/22, norma  que buscou ser funcional e acessível.2

Comentam-se alguns pontos relevantes do novo Provimento.

Natureza do procedimento e as diferenças essenciais em relação à usucapião

O direito material à adjudicação compulsória está descrito nos artigos 1.417 e 1.418 do Código Civil3. Ele se configura quando alguém pagou e quitou pela aquisição de um imóvel o preço convencionado, mas uma das partes não outorgou a escritura pública. A pretensão resistida (obrigação de fazer não cumprida), embora mais frequentemente seja do vendedor, poderá ser também do adquirente que não queira firmar o título definitivo, algo que a própria lei 14.382 expressamente reconheceu.

Assim como ocorre na ação judicial de adjudicação compulsória, o procedimento extrajudicial ganha contornos bem definidos de natureza pessoal¸ com repercussões reais. Isso porque, é uma relação obrigacional, que depende que o proprietário esteja assim na matrícula para que seja cabível o procedimento e que ao final gere os efeitos reais esperados.

Obviamente e por isso, é necessário que haja o registro do imóvel para viabilidade do feito (matrícula ou transcrição).

Tal ação tem natureza constitutiva, pois o título ainda não existe. No sistema extrajudicial, o título é formado durante o procedimento4, através do qual a decisão final do registrador de imóveis reconhece o direito, por isso, o declara, possuindo ainda força executiva para que a adjudicação possa ser registrada.

O procedimento de adjudicação compulsória, enquanto processo administrativo5, avoca aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (artigo 15), algo que buscou ser refletido na consolidação normativa; o instrumento que caracteriza o direito material à adjudicação será apresentado para um notário, para que se possa ir formando o título no procedimento com as formalidades necessárias, declarando-se o direito do requerente, o que ao cabo será executado no Registro de Imóveis se positiva a qualificação, para efetivação da adjudicação.

Será procedimento potencialmente mais célere que o da usucapião extrajudicial6, pois desnecessárias as notificações de terceiros, inclusive dos entes públicos, bem como, a priori, sem necessidade de publicação de editais.7

A confecção da ata notarial será mais célere, pois não envolve, necessariamente, a obrigação de visita no local8. Pela sensibilidade, é atribuição do notário orientar o requerente, em conjunto com seu advogado ou defensor público, sobre o instrumento mais adequado para bem tutelar o direito à propriedade.9 

O importante papel do notário no procedimento

Consenso nos estudos e trabalhos desenvolvidos pelos órgãos do Agente Regulador do ONR (Conselho Consultivo e Câmara de Regulação) foi alicerçar a importância da função notarial para caracterizar o direito do requerente no procedimento.

O artigo 440-G do CNN/CN/CNJ-Extra dispõe que caberá ao notário, entre outras questões:

(a)    Identificar os instrumentos que caracterizem o direito material do requerente, na relação contratual da promessa de compra e venda;

(b)    Declarar a quitação do preço, pelos documentos e informações disponíveis;

(c)     Verificar a inadimplência do requerido, na recusa à outorga do título definitivo. 

Caberá ao notário, ainda, verificar a possibilidade de composição do conflito antes mesmo de iniciar a ata notarial (artigo 440-G, §8º). Isso será de suma importância, pois o notariado brasileiro está habilitado para as melhores técnicas de mediação e conciliação, e o CNJ tem um guia normativo para isto, que é o Provimento nº 67 de 2018 (atuais arts. 18 a 57 do CNN/CN/CNJ-Extra). Em muitas circunstâncias, o contato realizado pelo Tabelião de Notas com a parte requerida será suficiente para resolução do conflito, sem que o requerente precise arcar com as demais etapas do procedimento extrajudicial de adjudicação.

Outro ponto importante será o Tabelião – o grande conhecedor das regras que guiam o sistema de formação do título translativo de propriedade – poder, na ata notarial, complementar as informações sobre as partes (especialidade subjetiva) e sobre o imóvel (especialidade objetiva) necessárias para o título nascedouro aceder ao fólio real, como alude o §4º do artigo 440-G do supramencionado Provimento de atualização do CNN/-CN/CNJ-Extra.

A plena integração entre o E-notariado e o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos – Serp possibilitará o protocolo da documentação com a ata pelo próprio Tabelião de Notas ao Registrador de Imóveis, junto com o requerimento do advogado ou do defensor público. O objetivo aqui é agilizar o procedimento, dando-lhe eficiência; com a revisão da organização da documentação pelo próprio notário, o deferimento da adjudicação, espera-se, será ainda mais recorrente. 

O importante papel do registrador no procedimento 

O requerimento protocolado no Registro de Imóveis gera a prenotação adequada, cuja prioridade, enquanto vigente, protegerá o requerente contra eventuais direitos de terceiros sobre o imóvel que sejam apresentados posteriormente (artigo 440-K).

Na cooperação de todos os agentes do extrajudicial para a formalização do direito à moradia no procedimento de adjudicação, o Registrador de Imóveis será o juiz natural da causa, mas também com poderes instrutórios, a fim de que, em percebendo omissão ou contradição na documentação apresentada, possa oportunizar o saneamento pelo requerente nos autos administrativos (artigo 440-AF, I).

Ele também será responsável pela formação do contraditório no procedimento, com a notificação ao requerido para que este: (a) tenha a oportunidade de conhecer das alegações do requerente, podendo impugná-las; (b) caso prefira, quede-se omisso, sem oposição; (c) possa anuir com o procedimento, mediante a sua resposta anuente.

Aqui, procurou-se superar uma omissão do artigo 216-B da Lei Federal 6.015, prevendo-se a notificação por edital quando não for possível localizar o requerido (artigo 440-O). Outra leitura integrativa, refere-se à vedação de impugnações vazias, infundadas no direito brasileiro, mediante o regulamento no artigo 440-AB do CNN/CN/CNJ-Extra sobre a necessidade da contestação apresentar fatos ou documentos que legitimem a pretensão resistida, o que, em se configurando, não tornará possível a tramitação do procedimento na esfera extrajudicial.10

O registrador deverá analisar se os direitos de terceiros inscritos na matrícula possam ser impeditivos à tramitação e/ou deferimento do requerimento (ex vi arts. 440-AG e 440-AH).

Não serão impeditivos, por exemplo, averbações de direitos de terceiros do artigo 54 da Lei Federal 13.097, embora seguirão oponíveis ao requerente após a transferência da propriedade. Igualmente, direitos reais como a servidão, o direito real de habitação, de uso, tampouco impedem a transferência da propriedade, permanecendo inscritos na matrícula mesmo com o novo proprietário.11

As hipotecas (civil, cedular ou do SFH/SFI) exigirão ciência ou anuência do credor para a transferência da propriedade, algo que deve instruir o procedimento para que possa ser deferido. Imóveis alienados fiduciariamente não podem ser transferidos sem a participação efetiva do credor fiduciário, nos termos da lei 9.514/97.12

A qualificação registral do requerimento, a ata notarial, o requerimento inicial e os demais documentos terão por foco a efetividade da adjudicação. Após o deferimento, o imposto de transmissão oneroso intervivos (ITBI) deverá ser recolhido, tendo idealmente como fato gerador a decisão positiva do registro imobiliário. 

Boas práticas da Corregedoria Nacional

O trabalho fruto da normatização editada pelo Ministro Luis Felipe Salomão, enquanto Corregedor Nacional de Justiça, é um exemplo de boas práticas no Poder Judiciário brasileiro e na sociedade, pois envolveu atores imbuídos do princípio da cooperação, do franco e honesto intercâmbio de visões, conhecimento e ideias. O processo idealizado pelo Ministro celebra a transparência e a diversidade de olhares para a apresentação de um texto plural, que terá como missão resolver com eficiência os problemas do cotidiano em que aplicado, trazendo eficácia à prestação do serviço público realizado pelo Foro Extrajudicial, traduzindo a simplificação e a desburocratização dos atos e negócios jurídicos no país, tão almejadas pela lei 14.382/22.

Registra-se o trabalho coletivo dos magistrados Antônio Carlos Alves Braga Júnior, Carolina Ranzolin Nerbass, Daniela Pereira Martins Madeira, Denise Oliveira Cezar, Fernando Cerqueira Chagas, Josué Modesto Passos, Márcio Evangelista Ferreira da Silva, Rafael Maas dos Anjos e Ricardo Silveira Dourado.

Também se registra o trabalho coletivo dos juristas do Conselho Consultivo, Alberto Gentil de Almeida Pedroso, Bernardo Chezzi, Fernanda de Freitas Leitão, Flávia Pereira Hill, Flávio Tartuce, Jordan Fabrício Martins, Ricardo Campos e Ricardo Gomes da Silva.

Universalização do acesso à moradia

O Provimento 150 do CNJ, assim, é mais uma opção segura ao cidadão brasileiro para regularizar o direito à casa própria, servindo como instrumento efetivo, inclusive ao mercado imobiliário, seja com relação ao estoque de unidades em nome ainda do empreendedor, seja para melhor circulação de riquezas pelo ingresso do bem na economia formal e a sua plena disponibilidade, em tempo muito menor do que o de um processo judicial.

Está aberto o futuro, em um instrumento que será aperfeiçoado e materializado pelos advogados, notários, registradores, judiciário e pelas futuras gerações.

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1 Registra-se, também, a liderança da juíza Daniela Madeira em todo o processo, além da sua efetiva participação em todas discussões.

2 Registramos honrosamente a participação de todos os membros nominalmente no final deste texto.

3 Código Civil. Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel. 

Art. 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.

4 Esse entendimento de formação do título durante o procedimento foi inicialmente esposado pelo Colégio Registral de Minas Gerais e também por autores como Moacir Petrocelli, registrador de imóveis de São Paulo, citados no parecer da relatoria no Conselho Consultivo.

5 Festeja-se a opção de redação do Provimento 150 na expressão “processo extrajudicial”. De fato, trata-se de uma sequência de atos concatenados com atores com papeis bem definidos, para dizer-se o direito ao final, efetivando-o. A compreensão do processo extrajudicial dialoga com o fenômeno da extrajudicialização. A expressão também atrai a aplicação do artigo 15 do CPC, com a incidência subsidiária das normas processuais. Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

6 É certo que o deferimento da adjudicação extrajudicial compulsória depende que o princípio da continuidade registral esteja respeitado no registro imobiliário. Exemplo, não é possível a adjudicação de um contrato que descreve uma unidade autônoma quando a matricula sequer tenha o registro do condomínio edilício.

7 Poderia ainda ser proposto um usucapião extrajudicial para caso que se trata claramente de aquisição derivada, por sucessão onerosa, típica de cabimento da adjudicação compulsória extrajudicial? Nesse caso, não é devido o imposto de transmissão? É uma questão interessante a ser lida a partir do artigo 13, §2º do Provimento 65 do CNJ: Em qualquer dos casos, deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, devendo registrador alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei.

8 Embora não necessária a conferência da posse, tem-se levantado em seminários e debates nacionais a respeito da conveniência de que a ata de adjudicação compulsória reúna os elementos da ata de usucapião extrajudicial. O tema será melhor debatido em outro artigo.

9 O autor Bernardo Chezzi está promovendo uma série de artigos sobre a adjudicação compulsória, com atores fundamentais para a lei e a norma do CNJ. Confira nas próximas edições um texto específico abordando as circunstâncias de cabimento entre o usucapião extrajudicial e a adjudicação compulsória extrajudicial.

10 Matéria que poderá servir de arcabouço para a atualização do Código Nacional, no tema da usucapião extrajudicial, refletindo as alterações da Lei Federal 14.382 sobre o artigo 216-A da Lei de Registros Públicos.

11 Aqui se lembra que a adjudicação compulsória não se trata de forma de aquisição originária, e sim derivada, com a continuidade de todo o regime jurídico de terceiros sobre o imóvel.

12 Este tema também será o objeto de artigo próprio.

Fonte: Migalhas

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