A Constituição Federal, em seu artigo 226, reconhece a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, sendo esta considerada a convivência duradoura pública, contínua, com o propósito de constituir uma família, sendo dispensada qualquer formalidade para o seu reconhecimento, operando-se em regra os efeitos patrimoniais da comunhão parcial dos bens.
O Código Civil, em seu artigo 1.725, prescreve que “na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens“. Ressalve-se que, como no casamento de pessoa com 60 anos de idade, o Código Civil, em seu artigo 1.641, inciso II, impõe a observância do regime de separação obrigatória de bens, pelos mesmos motivos às uniões estáveis é aplicável a mesma regra, sendo o convivente sexagenário (REsp 646259, relator ministro Luis Felipe Salomão).
Na constância da união estável, a necessidade de autorização de ambos os conviventes para a validade de alienação de bens imóveis adquiridos no curso da união estável é consequência do regime da comunhão parcial de bens, aplicando-se na espécie a regra do artigo 1.647, inciso I, do Código Civil (REsp 1424275, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino).
Por razões de segurança jurídica, as partes podem optar pela celebração de contrato de convivência, por instrumento particular ou público, especialmente para a fixação de regime patrimonial de bens diverso do da comunhão parcial de bens, como por exemplo o da separação total de bens.
Por questão lógica, a partir de um certo instante o namoro pode se convolar em união estável, com a presença dos atributos exigidos no artigo 1.723 do Código Civil (convivência pública, contínua e estabelecida com o objetivo de constituição de família), e a eventual formalização da união estável, mediante contrato específico, somente ocorre posteriormente, podendo ser celebrado a qualquer tempo pelos conviventes.
Sendo assim, afigura-se comum e natural que, por ocasião da celebração do contrato de união estável, haja a previsão de cláusulas com eficácia retroativa, em que se declara a ocorrência de união estável pré-existente e se autorregula o regime patrimonial dos bens havidos na sua constância; isto é, declaração espontânea e livre dos companheiros, dando conta do início da união estável (fato pré-existente) e eventualmente o regime patrimonial, quando há a intenção de afastar o regime da comunhão parcial.
Em outros termos, o Código Civil, em seu artigo 1.725, prevê, no que se refere ao regime patrimonial de bens na união estável, uma norma jurídica dispositiva, segundo a qual, não havendo manifestação em contrário dos conviventes em instrumento por escrito, prevalecem as normas da comunhão parcial de bens.
Em decisões que desprezam por completo o princípio da autonomia privada, fixando uma interpretação do 1.725 do Código Civil incompatível com a liberdade de agir dos particulares, o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo que o contrato de união estável, quando estabelece regime patrimonial de bens distinto do da comunhão parcial de bens, não tem eficácia retroativa, de sorte que os casais que registraram união estável em cartório e optaram pelo regime da separação total de bens para todos os anos passados da convivência correm o sério risco de ter o acordo anulado pelo Poder Judiciário.
Em julgamento realizado em 17 de agosto, a 3ª Turma do STJ, no REsp 1845416, relatora ministra Nancy Andrighi, decidiu que não é possível a celebração de escritura pública modificativa do regime de bens da união estável com eficácia retroativa, especialmente porque a ausência de contrato escrito convivencial não pode ser equiparada à ausência de regime de bens na união estável não formalizada, de sorte que às uniões estáveis não formalizadas em contrato aplica-se o regime legal da comunhão parcial de bens, não se admitindo uma escritura pública posterior com efeito retroativo.
No mesmo contexto, por ocasião da extinção da relação, os então conviventes resolveram celebrar, mediante escritura pública, uma declaração de reconhecimento de união estável, elegendo retroativamente o regime de separação total de bens, mas a referida cláusula foi reputada ilegal pelo STJ em razão da prevalência do regime legal da comunhão parcial no período anterior à celebração do contrato (REsp 1597675, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino).
Por oportuno, o Código Civil, em seu artigo 1.725, exige apenas o instrumento por escrito e pode ser celebrado o contrato de convivência a qualquer momento durante a união estável, sendo possível aos conviventes dispor como bem entenderem sobre seu patrimônio passado e futuro, ressalvados apenas direitos de terceiros de boa-fé, consoante lições uníssonas na doutrina civilista (cf. YUSSEF CAHALI. “Contrato de Convivência na união estável”. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 82; CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA. “Instituições de Direito Civil”. Rio de Janeiro: Forense, vol. V, p. 666; PAULO LOBO. Direito Civil. São Paulo: Saraiva, vol. 5, p. 178).
Por sua vez, no instituto do casamento, o pacto antenupcial tem, na sua essência e razão de ser, o propósito de regular os fatos jurídicos futuros e o regime patrimonial dos bens que irá reger os atos que irão ser subsequentes, enquanto que, na união estável, opera-se o diametralmente oposto, eis que o contrato de convivência reconhece um estado de convivência pretérito (eficácia retroativa) e, por vezes, vem a ser celebrado para colocar fim a um período de união estável, fixando justamente as bases patrimoniais desse tempo, fazendo o papel equiparável a de um distrato (cf. NELSON NERY JR. Instituições de Direito Civil. São Paulo: 2019, v. 4, p. 316).
Nesse contexto, quando do fim da união estável, os companheiros podem solver as questões patrimoniais sem a interferência do Poder Judiciário. Na hipótese de haver consenso sobre a divisão dos bens é possível proceder à partilha extrajudicial. Como não há a necessidade da intervenção estatal para sacralizar o fim da união estável, pode o casal se limitar a proceder a partilha de bens, que pode ser levada a efeito por contrato público ou particular (cf. MARIA BERENICE DIAS. “Manual de Direito das Famílias”. São Paulo: RT, p. 267)
Como a regra do artigo 1.725 do Código Civil é uma norma jurídica tida como dispositiva dispositiva — terá vigência, se não houver ajuste em sentido contrário pelos particulares —, entende-se que é lícito aos conviventes ajustar regra em sentido contrário, cujo único requisito exigido legalmente é a forma escrita, não se proibindo a eficácia retroativa, especialmente porque o contrato de convivência tem, na sua essência, atribuir efeitos jurídicos a fatos pretéritos consubstanciados no reconhecimento da convivência e no regime patrimonial dos bens.
Como assentado no voto vencido no REsp 1845416 pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, a lei não exige que a celebração acerca do regime patrimonial de bens em contrato escrito, possivelmente eleito já no início da relação convivencial e faticamente regente dos bens dos conviventes, dê-se, necessariamente, em momento anterior ao estabelecimento da união estável, aos moldes de um pacto antenupcial, como se dá no instituto do casamento.
Pela sua natureza, o contrato de convivência não é ontologicamente um negócio jurídico voltado para projetar apenas efeitos jurídicos para o futuro, mas para reconhecer um fato jurídico pretérito, servindo, pois, para estabelecer regras jurídicas patrimoniais tanto para o passado como para o futuro, de sorte que a autonomia privada das partes deve ser respeitada, especialmente porque o regramento constante do artigo 1725 do Código Civil outorga um amplo âmbito para o exercício pelos particulares da autonomia privada com vistas à regulação do seu patrimônio.
*Gleydson K. L. Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP e professor da graduação e mestrado da UFRN.
Fonte: ConJur