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Área do Associado

Considerações sobre como a usucapião tabular pode trazer proteção ao comprador de boa-fé, no caso da fraude presumida do art. 185 do CTN.

 

Introdução

 

No presente texto seguem algumas considerações sobre a difícil convivência do adquirente de imóveis no Brasil com dois microuniversos normativos, que existem em paralelo: o do Direito Imobiliário (regras processuais, registrais, notariais, contratuais, urbanísticas, consumeristas e outras mais), no qual a informação sobre ônus reais e pessoais tem sido cada vez mais facilitada e concentrada na matrícula imobiliária, em prol da segurança, da economia e da rapidez do tráfico imobiliário, e o do Direito Tributário, no qual a surpresa e a incerteza são tidas como aceitáveis contra o comprador de um imóvel, em prol da superproteção de créditos tidos na lei como especiais há quase sessenta anos – embora na Constituição atual já não tenham o mesmo status, no cotejo com outros interesses igualmente relevantes. E em seguida trazemos nosso entendimento de como nesse primeiro microcosmos existe um instrumento – a usucapião tabular – que em algumas situações conflitantes pode trazer um pouco de proteção ao adquirente de boa-fé, quando vítima de ameaças desse “outro mundo” dos créditos tributários superprivilegiados.

 

Tem sido noticiado pela mídia, em especial no meio jurídico-imobiliário que o CNJ, em recente decisão, proibiu os cartórios de todo o país de exigir certidões negativas de débito – como a CND – Certidão Negativa de Débitos ou a CPEN – Certidão Positiva com Efeito de Negativa – como condição para lavrar ou registrar escrituras de compra e venda de imóveis. Os comentários mais frequentes têm sido que embora a medida seja desburocratizante, a não “filtragem” das pendências fiscais pode levar o adquirente a mais riscos, haja vista a possibilidade de penhora do imóvel no caso de fraude à execução fiscal – ou seja, as certidões, embora não sejam mais condição para a prática dos atos, sendo positivas ou negativas são fundamentais para ciência de débitos pelo adquirente.

 

Por um lado a decisão do CNJ já vem tarde, vez que o condicionamento de qualquer ato notarial ou registral à prova de quitação de tributos outros que não os diretamente relacionados ao ato (como os impostos de transmissão) já foram há muito considerados pelo STF como sanção política, como nas ADIn 394-1 e ADIn 173, julgadas em 2008 sob relatoria do ministro Joaquim Barbosa, nas quais entendeu o Tribunal que a exigência de CND para a prática de atos da vida civil ou empresarial caracteriza sanção política, isto é, normas enviesadas a constranger o contribuinte, por vias oblíquas, ao recolhimento do crédito tributário. E a alusão a “certidões fiscais” do § 2º do Art. 1º da lei 7.433/85, que dispõe sobre os requisitos para a lavratura das escrituras públicas, desde tal entendimento do STF já deveria, a nosso ver, ser interpretada como dirigida exclusivamente às certidões de pagamento dos impostos de transmissão (como o IPTU e o ITR) e outras certidões, sejam positivas ou negativas, essenciais para a caracterização cadastral dos imóveis.

 

No entanto, por um outro lado, a nova ênfase que se dá ao tema, reavivando a necessidade da due diligence fiscal pelo adquirente, contribui para o debate do descompasso entre toda a sistemática que o legislador Federal tem criado no país nos últimos anos, em prol da segurança jurídica nos negócios imobiliários, e as anacrônicas e assíncronas proteções ao crédito fiscal que remanescem desde 1966 no CTN.

 

O sistema normativo de prevenção da fraude contra credores e o mundo paralelo do sistema tributário

 

O registro público de Imóveis vem se modernizando de forma acelerada, e talvez o sistema matricial, criado em 1973, tenha recebido nos últimos quinze anos mais inovações do que em todo o histórico anterior. Antigos dogmas registrários foram flexibilizados para a lida com a regularização fundiária urbana, o registro se informatizou e cada vez mais se integra a sistemas cadastrais, vários procedimentos foram desjudicializados e a folha registral se consolida mais e mais como o locus, por excelência, das informações de segurança para o adquirente do imóvel, dispensando diversas pesquisas a partir da presunção de boa-fé daquele que confiou em seu teor. Quanto mais se facilita a concentração, no registro de imóveis, de informações creditícias contra o alienante, mais o sistema legal imobiliário se volta à segurança do adquirente, e mais diligência se exige do credor. Essa tem sido a tendência legislativa, sendo o mais notável exemplo o art. 54 da lei 13.097/15, com as alterações das leis 14.382/22 e 14.825/24. E também a tendência dos tribunais, a partir da súmula 375 do STJ, de 2009, cujo enunciado é: “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.

 

Há respeitáveis (embora ainda minoritários) entendimentos doutrinários no sentido de que as regras sobre a concentração de atos na matrícula positivadas pelas leis 13.097 e 14.382 mudaram o sistema registral imobiliário brasileiro, que até então se pautava pela legitimação registral, caracterizado pela presunção relativa de veracidade da inscrição registral imobiliária, para o sistema de fé pública registral, no qual aquele que, de boa-fé, confiou na informação registral e a partir dela adquiriu um direito real sobre um imóvel, terá seu direito protegido em caso de defeitos ou nulidades na cadeia dominial anterior.

 

Em paralelo ao sistema formal, a posse também vem sendo objeto de algumas mudanças legislativas, em especial para favorecer sua conversão em direito real, haja vista o elevado nível de informalidade registral ainda existente no país e o nítido esforço, por vários setores econômicos, para inserir os imóveis hoje informais num sistema de garantias reais.

 

Toda essa evolução vem se dando por meio de legislação esparsa, com efeitos pulverizados em mudanças na lei dos registros públicos, no CC, na lei dos loteamentos, na lei das incorporações, na lei dos cartórios, lei de alienação fiduciária e outras mais. No entanto o sistema legislativo tributário nacional não acompanhou a mesma tendência no tocante à segurança jurídica dos negócios imobiliários. Ao revés, o CTN, lei 5.172/66, mantém no art. 185, desde sua redação original, uma presunção de fraude à execução pelo contribuinte que aliena bens estando inscrito em dívida ativa, mesmo sem qualquer processo executivo fiscal, sob a seguinte redação: presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa. Além do CTN a legislação previdenciária, por exemplo, ainda contempla a famigerada exigência de CND para averbação de construções no registro de imóveis, dentre outros atos (art. 47 da lei 8.212/91), que como já visto, configura sanção política arrecadatória.

 

Num sistema federativo com um Fisco Federal, 26 Fiscos Estaduais e o do Distrito Federal e mais de 5.500 Fiscos municipais, com competências tributárias distribuídas por todos os entes, é evidente que a mácula decorrente da inscrição em dívida ativa pela administração fazendária de qualquer deles, em tese, pode atingir também qualquer venda de imóvel pelo respectivo contribuinte ou responsável tributário, em qualquer local do país.

 

Ocorre que diversamente de outros credores, o Fisco não se sujeita à prévia inscrição de seu crédito na matrícula imobiliária (embora possa perfeitamente fazê-lo) para invocar a fraude à execução. E o entendimento do STJ é de que o art. 185 do CTN trata de uma presunção absoluta de fraude, ainda que se trate de mero ato administrativo unilateral, muitas vezes sem publicidade efetiva para um eventual interessado. No REsp 1.141.990 – PR, julgado em 2010 e submetido ao regime do art. 543-C do CPC de 1973 (regime de recursos repetitivos), entendeu o STJ que ao Fisco não se aplica a súmula 375, ou seja, a presunção absoluta de fraude à execução do art. 185 do CTN prescinde de qualquer registro. Destaca-se no acórdão que a diferença de tratamento entre a fraude civil e a fraude fiscal justifica-se pelo fato de que, na primeira hipótese, afronta-se interesse privado, ao passo que, na segunda, interesse público, porquanto o recolhimento dos tributos serve à satisfação das necessidades coletivas.

 

É por esses aspectos que se alude, no presente texto, a dois mundos distintos: um deles construído a partir de diversas leis e em constante evolução, com um arcabouço legal sistêmico, cível-administrativo-processual, no qual a informação é concentrada num só repositório, que é a matrícula registral imobiliária, e que é o microuniverso normativo que orienta os milhares de negócios imobiliários realizados todos os dias no país. E outro mundo, do Direito Tributário, que coexiste à parte, tal qual o Mundo de Nárnia, um universo fictício criado pelo escritor irlandês C. S. Lewis para a série de livros “As Crônicas de Nárnia”. Esse universo paralelo da literatura está ao alcance dos personagens ao passarem por um portal escondido em um armário, em poucos passos a partir do “nosso mundo”, a Terra. Nesse mundo paralelo, diferente do mundo normal (no qual o comprador pode avaliar os riscos do negócio e se basear num repositório seguro de informações, ainda que com alguns riscos), a surpresa da informação que um alienante de imóvel estava em dívida ativa perante qualquer fiscalização tributária do país, quando dispôs do bem, pode cair como um raio sobre o adquirente, na forma de uma presunção absoluta de fraude. Ou seja, nesse mundo paralelo, mesmo agindo em estrita boa-fé e com todas as cautelas legais de adquirente diligente, o comprador de imóveis viverá a incerteza, pois em algumas situações lhe será impossível ou muito difícil varrer todas as possibilidades de inscrição do alienante em dívida ativa perante os fiscos de todos os entes federativos em que aquele possa ser devedor ou responsável tributário – mesmo porque inexiste um cadastro único que concentre todas as administrações tributárias do país.

 

Um exemplo hipotético do descompasso entre os universos paralelos

 

Como exemplo do que a presunção absoluta de fraude à execução do art. 185 do CTN pode acarretar num negócio imobiliário, tome-se o seguinte exemplo hipotético: Caio, pessoa de bom nível de acesso à informação em geral, celebrou promessa de compra e venda de um imóvel da empresa Engenharia Ltda, que é uma empreiteira de obras civis sediada em São Paulo. Extraiu previamente a certidão da matrícula, que foi negativa para quaisquer ônus, e verificou que o imóvel já era utilizado há vários anos pela vendedora.

 

Ao pedir ao tabelião de notas para lavrar a escritura pública, Caio foi informado que estava dispensado de apresentar certidões fiscais ou de ações contra a vendedora, por força das leis 13.097/15 e 14.382/22 e porque o CNJ recentemente proibiu a exigências de tais certidões, pelos tabelionatos, para lavratura de escrituras. No entanto, pessoa cautelosa que é, ainda assim Caio extraiu certidões fiscais da vendedora perante as fazendas públicas do município de São Paulo, do Estado de São Paulo e da União Federal, todas negativas. E também extraiu certidões negativas de ações cíveis e criminais da Justiça Estadual e da Justiça Federal paulistas, além de certidões do TRT e do Banco de Devedores do TST. E em se tratando de uma sociedade, Caio extraiu também as mesmas certidões, de todos os sócios. Tomou o cuidado adicional de tirar certidões da comarca de situação do imóvel e dos domicílios da sociedade e dos sócios. Todas as certidões foram negativas. Em consulta à CNIB – Central Nacional de Indisponibilidades de Bens, o resultado também foi negativo, tanto para a empresa quanto para os sócios.

 

Feita a due diligence, Caio então pagou o preço, assinou a escritura e a levou a registro, se sentindo tranquilo e confortável como feliz proprietário do imóvel, o qual passou a ocupar e utilizar.

 

No entanto a Engenharia Ltda. havia realizado, anteriormente à venda do imóvel, diversas empreitadas de obras civis, em vários estados da federação. E em uma delas, prestada em São Luís do Maranhão, a empresa não recolheu o ISS (imposto sobre serviços, de competência do Fisco municipal do local de prestação do serviço), tendo sido inscrita em dívida ativa pelo Fisco municipal da capital maranhense.

 

A execução fiscal foi ajuizada dentro do prazo prescricional, de cinco anos, e mais de seis anos depois compra do imóvel por Caio, o Fisco exequente constatou que a empresa executada não tinha bens penhoráveis suficientes para garantir a dívida. E em pesquisa nos serviços digitais do operador nacional do registro, o procurador fiscal localizou a informação registral da venda feita a Caio, após a inscrição da executada em dívida ativa. Pois bem: mais de seis anos depois de transferir para si o bem, Caio foi surpreendido com a penhora de seu imóvel na execução fiscal. O município exequente, com base no art. 185 do CTN, alegou que a venda foi celebrada em fraude à execução, eis que a vendedora já estava inscrita em dívida ativa quando vendeu o bem. E que, portanto, a venda era ineficaz perante o exequente, e por isso a penhora seria lícita.

 

Caio apresentou embargos, demonstrando sua boa-fé, mas ante a firme posição do STJ de que o CTN, como lei complementar, se sobrepõe às leis ordinárias 6.015/73, 13.097/16, 14.382/22 e CPC, e que a presunção de fraude à execução do art. 185 é absoluta, os embargos foram julgados improcedentes. Deu-se então a evicção do imóvel, para desespero de Caio.

 

A história, embora totalmente fictícia, é semelhante a muitas outras verdadeiras, e que já causaram sentimento de revolta e injustiça em muitos brasileiros, administrados e jurisdicionados sob a égide de dois mundos paralelos.

 

Há duas principais questões políticas a contribuir para a manutenção desse status quo de dissonância sistêmica, no tocante ao Poder Legislativo: a primeira é a dificuldade de discussão governamental de qualquer mudança legislativa que retire prerrogativas e garantias do aparato arrecadatório estatal. A segunda é a necessidade de lei complementar para qualquer alteração do CTN, nos termos do art. 146, III da CF/88, o que demanda maioria absoluta das duas casas legislativas, nos termos do art. 69 da CF. Lembrando-se ainda que a matéria em questão não poderia ser veiculada por medida provisória, por força do art. 62, § 1º, III da CF, e que várias das mudanças legislativas recentes em favor da segurança jurídica dos negócios imobiliários  decorreram da conversão de medidas provisórias – inclusive a própria lei 13.097/15.

 

Clique aqui para ler a íntegra do artigo.

 

Fonte: Migalhas

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