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O testamento, como se sabe, é negócio jurídico personalíssimo, unilateral, formal e revogável, que permite a alguém dispor de seus bens, no todo ou em parte, para depois de sua morte. Diz-se “personalíssimo” porque somente o próprio disponente pode fazê-lo, não se admitindo, no caso, o poder de representação; unilateral e gratuito, porque não há contraprestação exigida do herdeiro ou legatário, ainda que a instituição do beneficiário se faça com modo ou encargo; formal e solene, por constituírem, as suas formalidades e solenidades, a principal garantia de cumprimento da vontade do testador; e essencialmente revogável, já que a vontade do testador pode se alterar após a lavratura do testamento.

Como ensina Zeno Veloso, “uma das principais características do testamento é a de ser um ato revogável. O testamento contém disposição de última vontade, e a vontade é ambulatória, (…) O testador pode modificar, livremente, alterar, quando lhe aprouver, o que declarou no testamento”[1].

Como negócio jurídico, o testamento se submete aos requisitos gerais de validade previstos no artigo 104 do Código Civil[2]. Além dessas hipóteses, a ausência ou redução do discernimento também constitui causa de nulidade do testamento, ainda que formalmente capaz o testador. Isso porque o legislador disse expressamente que não poderiam testar os que, no ato de fazê-lo, não tivessem pleno discernimento (artigo 1.860)[3], sendo nulo o negócio jurídico quando a lei “proibir-lhe a prática, sem cominar sanção” (CC, artigo 166, VII).

A ausência ou redução do discernimento não se vincula ao estado de capacidade, razão pela qual afastaremos destas reflexões qualquer discussão sobre as relevantes inovações na disciplina das incapacidades advindas com o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Recordando a longa tradição de nosso Direito e com base no Direito Comparado, ressalta Zeno Veloso que “o que se requer, fundamentalmente, em matéria de capacidade testamentária ativa, é que o indivíduo possa exprimir livremente a sua vontade, que tenha compreensão, discernimento, que saiba, enfim, o que está fazendo. Em consequência de enfermidade ou doença mental, ou de moléstia que repercuta no cérebro, a pessoa pode ficar com a razão comprometida, o espírito intensamente debilitado, sem possibilidade de querer autonomamente, de perceber as situações, de avaliar o que ocorre no mundo exterior, não tendo liberdade para deliberar, não exercendo espontaneamente o seu querer, e este é pressuposto essencial em sede de testamentos”[4].

Se, ao testar, o testador não tinha o pleno discernimento, o testamento é nulo, sendo desinfluente se o disponente se encontrava ou não sob curatela. O discernimento deve ser contemporâneo à facção do testamento. Sua redução ou ablação superveniente não invalida o ato, nem o testamento de quem não tinha discernimento se valida com a superveniência da capacidade de livre expressão da vontade (CC, artigo 1.861). Mas aqui reside o grande imbróglio: provar a presença, redução ou ausência de discernimento de alguém que pode já haver morrido muitos anos antes de instaurada a dúvida ou aberta a discussão. Como o direito de impugnar a validade do testamento só vai caducar cinco anos após a data do seu registro (CC, artigo 1.859), exsurge, com frequência, enorme dificuldade para se apurar se o testador realmente gozava de pleno discernimento quando dispôs por ato de última vontade.

Quando um herdeiro, sentindo-se prejudicado, afirmar que o testador não gozava de discernimento e esse fato é contraditado pelo herdeiro beneficiado pelo testamento, serão “necessárias normas positivas para determinar, entre um que afirma e outro que nega, qual dos dois tenha que provar sua asserção para impedir que sirva como certa a asserção do contrário”[5]. Essas normas nos mostrarão o caminho para alcançar ou demonstrar a verdade sobre os fatos afirmados, ora limitando o campo dos fatos a conhecer, ora regulando o processo de conhecimento pelo juiz[6].

Entre essas regras destaca-se o artigo 370 do CPC/15, a impor ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito[7].

Em se tratando de demanda que tenha por objeto a invalidade de um testamento, as provas indiretas constituem as verdadeiras “rainhas” das provas, as provas por excelência. Em um texto clássico, publicado na Revista dos Tribunais no início do século passado, Luiz Frederico S. Carpenter já advertia sobre a impossibilidade de se fazer prova direta sobre a incapacidade do testador[8].

Na investigação sobre a nulidade do ato de última vontade, por ausência ou redução do discernimento do testador, deve o juiz fazer uso da prova indireta, concretizada por presunções, ou por indícios, ou por sinais, ou por suspeitas, ou por adminículos. Somente esses elementos poderão comprovar a falta de discernimento de quem já não existe mais, fisicamente, no plano dos fatos.

As provas indiretas, segundo João Monteiro, “não estão escritas nas folhas dos autos pois resultam de um ‘operação lógica’, de maior ou menor proficuidade, consoante o maior ou menor grau de sagacidade do espírito de quem as estiver investigando: isto é, resultante ‘de combinações ideais, inqualificáveis a priori, enfim, resultam de conjecturas que o espirito induz por via de induções ulteriores’”[9].

No caso de nulidade decorrente da falta de discernimento do testador, a prova indireta mais eficaz (e talvez a única passível a se chegar à verdade dos fatos) é o laudo pericial retrospectivo ou perícia psiquiátrico-forense póstuma retrospectiva.

Trata-se de prova pericial médica indireta, tendo em vista a morte do testador, destinada à averiguação de seu estado de saúde prévio e concomitante à lavratura do testamento, e que pode e deve ser requerida com amparo no artigo 370 do CPC/15.

A prova pericial médica indireta consiste na realização de perícia com base exclusivamente em documentos médicos e informações relativas ao histórico do paciente, com o fito de desvendar o estado de saúde pretérito do falecido, a partir de rastros e pistas deixadas no tempo. Sobre o cabimento dessa espécie de perícia, pertinente transcrever, ainda, a doutrina de Fredie Didier Jr: “Há, porém, certas modalidades de perícias que, por seu resíduo histórico, se aproximam da prova testemunhal, embora desta ainda nitidamente se diferenciem. São as chamadas perícias retrospectivas ou indiretas. Por meio das mesmas, se faz um exame técnico dos vestígios presentes de fatos passados, para se concluir acerca da prova desses fatos. Na doutrina há dupla natureza na função do perito. O perito percipiendi, que faz a verificação dos fatos existentes, e o perito deducendi, que interpreta os vestígios de fatos passados”[10].

Como o autor do ato de última vontade já morreu, a existência ou não de enfermidade apta a comprometer-lhe o discernimento, na data em que lavrado o testamento, não pode ser provada, a não ser por meio de perícia médica indireta. O especialista do juízo analisará o prontuário médico do morto e confirmará, a partir da análise dos resultados dos exames realizados pelo de cujus, confirmativos das enfermidades de que padecia, se as doenças retiraram-lhe ou não o pleno discernimento para testar.

Nada impede, ao contrário, aconselha, que o perito faça entrevistas com as pessoas que conviveram com o testador à época do ato, justamente para cotejar a realidade estática dos documentos com a dinâmica presencial da vida. Para Pontes de Miranda, “se de algum fato, ou estado pretérito, precisa o perito para chegar às respostas aos quesitos, o caminho é a informação testemunhal, testemunhas informadoras (…) encontradas pelo perito”, que pode “ouvi-las sem forma de juízo, dando de tudo, no laudo, notícia circunstanciada”[11].

A jurisprudência é uníssona quanto ao cabimento da perícia indireta quando falecido o periciando[12]. Assim, havendo dúvida razoavelmente embasada sobre o pleno discernimento do testador em relação ao ato de testar, o juiz deve determinar a produção de prova pericial indireta.

Fonte: Conjur

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