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O cadastro positivo é um absurdo. Desrespeita privacidade dos dados. Entre post e tweets, o país nem vê

No rastro das estripulias de agentes públicos nas redes sociais, quase sempre autores de conteúdos irrelevantes, o consumidor brasileiro vai perdendo direitos. Sob esta fumaça tóxica, as prioridades da agenda nacional também ficam obnubiladas.

Frases de efeito, imagens provocativas, fake news contra jornalistas e outros formatos que mantêm o cenário atual ainda mais incandescente, podem divertir alguns espíritos perturbados. No geral, entretanto, causam grande irritação nos demais e até mesmo doses elevadas de repulsa.

O clima de balbúrdia transforma o ambiente de tal modo que propicia a evasão de responsabilidades e distrai a consciência social que acaba por cochilar diante de pautas realmente relevantes, cujas consequências são profundas e impactantes. O que importa de fato para a vida do pobre consumidor brasileiro, por exemplo, está muito além dos top trends das redes sociais, efêmeros e voláteis.

A aprovação do Cadastro Positivo, agora enviada para sanção presidencial, é um clamoroso e triste exemplo.

Sob a falácia da diminuição do spread bancário de modo a contribuir para redução de taxa de juros, propalou-se o mito de que “daqui para frente tudo vai ser diferente”. Os bancos, gentilmente, vão oferecer juros mais baixos para os consumidores.  Continua sem resposta convincente a pergunta: por que, até hoje, os milhões de brasileiros que aderiram ao Cadastro não tiveram este ganho?

A cantilena não se sustenta, como já argumentaram economistas de distintas tendências. Cabe destacar as observações pertinentes de Claudio Considera, ex-secretário nacional de Acompanhamento Econômico, em artigo publicado por ocasião do exame da matéria pelo Congresso.

Considera, professor da Universidade Federal Fluminense e ex-presidente do conselho da Proteste Associação de Consumidores, alfineta: “Na verdade, o que as instituições financeiras querem é zerar o risco de calote sem oferecer nada em troca. Além disso, a obrigatoriedade de fazer parte desse banco de dados de bons pagadores ferirá o Código de Defesa do Consumidor (CDC)”.

A exposição de dados do consumidor, de forma obrigatória, é de fato outra consequência perniciosa do Cadastro Positivo nestes tempos onde dados “são o novo capital do século 21”. O especialista Ronaldo Lemos, da Universidade de Columbia, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro corrobora tal entendimento com lúcida reflexão.

“O projeto vai tornar ainda mais crítica a ausência de proteção aos dados pessoais no Brasil. Em outras palavras, vai expor os dados da maioria dos consumidores, que poderão ser usados – sem seu consentimento – contra seus próprios interesses”, escreveu para o jornal digital Poder360.

Em praticamente todos os países avançados e democráticos, privacidade e consentimento do cidadão-consumidor é condição sine qua non para qualquer decisão que envolva informações da sociedade. O desequilíbrio entre as partes, uma das implicações sociais da economia baseada em aparatos tecnológicos de informação, já foi captado por estudiosos e especialistas.

Hoje, a fonte de poder na sociedade não é exatamente o dinheiro nas mãos de poucos, mas o domínio de informação nas mãos de alguns. Este é outro desdobramento previsível a partir da implantação da nova lei.

A propósito deste tema, inclusive, o respeitado constitucionalista Pedro Serrano, Mestre e Doutor em Direito de Estado pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), com pós doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, fez minucioso e cirúrgico estudo (encartado em um parecer proferido para o Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo).

Levantamentos de entidades de consumidores revelam que na legislação de todos os países da União Europeia a privacidade e o consentimento são cláusulas pétreas. A norma exige autorização prévia do consumidor para a inclusão de dados em cadastros de birôs de crédito.

No Reino Unido, o consumidor deve ser avisado também se a pontuação atingida será de fato utilizada e para qual fim específico. Registro importante: os birôs de crédito são regulados por uma agência reguladora e supervisora, o ICO (Information Commissioner’s Office), que não existe e nem está previsto no Brasil.

Nos Estados Unidos, o consumidor deve ser avisado sempre que suas informações forem utilizadas para decisão negativa de crédito. E para o compartilhamento de informações de cadastros de crédito, com empregadores, o consumidor deve autorizar previamente.

A repercussão negativa da nova lei para os consumidores passou praticamente despercebida em um país entretido com os efeitos tóxicos de tweets e posts.

Bons tempos aqueles em que a cortina de fumaça era apenas do trenzinho, como escreveu Mário Quintana: “nisto, o apito da locomotiva, e o trem se afastando, e o trem arquejando, é preciso partir, é preciso chegar… Ah, como esta vida é urgente!”

Sim, a vida é urgente. É crucial rever os prejuízos do Cadastro Positivo ao direito à privacidade, impedir a quebra de sigilo bancário e ficar atento ao monumental favorecimento a empresas que poderão fazer fortuna, às custas dos consumidores, ao se apropriarem das informações de 209 milhões de brasileiros.

Resta-nos, apenas, torcer para que mais um estelionato eleitoral seja evitado. E para tanto, o caminho é relativamente simples… basta que o atual presidente vete a matéria, ficando ao lado dos consumidores como o fez ainda enquanto era deputado federal.

E estamos em março, justamente o mês do consumidor. O gigante Brasil ainda não acordou.

Fonte: Poder 360

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